28 de July de 2021
“O MUNDO SE VIU OBRIGADO A DEBATER ASSUNTOS QUE TODOS QUERÍAMOS ESQUECER”

O CNB/CF conversou com a juíza da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Luciana Carone Nucci Eugenio Mahuad, autora do livro “Morte Digna?”, que debateu o tema das Diretivas Antecipadas de Vontade no âmbito da bioética e propôs sua regulamentação em lei, além de abordar o papel vital dos tabeliães de notas na aferição da vontade das partes.

O primeiro semestre de 2021, quando a pandemia de coronavírus completou um ano no Brasil, registrou-se um recorde histórico na realização de testamentos e testamentos vitais em Cartórios de Notas do País. O trabalho de assegurar a vontade das pessoas em tempos em que o tema morte é amplamente debatido nunca ganhou tanto destaque da mídia e a atenção pública quanto nos últimos meses.

Para entender melhor o assunto e a íntima relação entre o Direito, os atos extrajudiciais e o respeito à vontade e autonomia da pessoa perante a morte, o Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF) conversou com a juíza da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Luciana Carone Nucci Eugenio Mahuad, autora do livro “Morte Digna?”, publicado em 2018 pela editora Lumen Juris.

A obra é fruto da tese de mestrado em Direito Civil da autora para a Universidade de São Paulo (USP) e analisa o Direito à Vida e o Direito à Morte sob a ótica do respeito à dignidade e Autonomia Privada do paciente e suas implicações jurídicas, com um estudo sobre a viabilidade das Diretivas Antecipadas de Vontade e sua aplicação dentro de uma proposta de regulamentação da matéria por lei.

O ato, que somente no 1º semestre deste ano teve mais de 360 DAVs realizadas, um aumento de 65% em relação ao mesmo período de 2020, ainda não possui uma legislação específica no Brasil, sendo contempladas apenas pela Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina, que reconhece o Testamento Vital e permite ao paciente registrá-lo em sua ficha médica ou prontuário, documento que tenha cada vez mais crescido no País. “Os tabeliães auxiliam na prevenção de conflitos e na construção de uma sociedade mais harmônica!”

Leia a seguir a entrevista na íntegra:

CNB/CF – O que a motivou escrever o livro “Morte Digna”? Como foi o processo de pesquisa realizado durante o mestrado da senhora?

Luciana C.N.E. Mahuad – O livro foi o resultado de meus estudos de mestrado na USP em Direito Civil (2015-2017). A escolha do tema aconteceu após uma aula muito especial de meu orientador, professor Claudio Luiz Bueno de Godoy, sobre os Direitos da Personalidade. Definido o tema, iniciei a pesquisa com o apoio dele, elaborando minha dissertação de mestrado. Após aprovação pela banca, houve recomendação de publicação.

CNB/CF – Por quais motivos o livro revisita os Direitos da Personalidade antes de debater mais a fundo a expressão de vontade das pessoas?

Luciana C.N.E. Mahuad – O trabalho com as formas de interferência no processo morte exigiu compreensão dos Direitos da Personalidade, notadamente de seu conceito, para que se pudesse construir a ideia de um direito à morte digna.

Na nossa concepção, são direitos subjetivos outorgados, regulados e limitados pelo direito objetivo com uma finalidade especial (de tutela da dignidade humana), os quais impõem deveres jurídicos de respeito à igualdade e à solidariedade. Impõem, ainda, dever de proteção pelo Estado, mesmo para casos em que o próprio titular do direito não a deseje. Existe grande relevância, para o Direito, de todo tipo de ação ou intervenção destinada a alterar as condições normais de existência, notadamente no que diz respeito aos tratamentos médicos e à discussão em torno da eutanásia e da ortotanásia, porque eles implicam relativização na proteção do direito à vida. Um dos pontos centrais do trabalho está na seguinte questão: haveria sustento social e jurídico para ampliação da autonomia privada em tais áreas, com enfraquecimento da concepção absolutista da tutela do direito à vida (que é o mais importante Direito da Personalidade na medida em que pressuposto lógico de todos os demais)?

CNB/CF – Como o livro desenvolve a dinâmica de escolhas médicas e o respeito à autonomia privada do paciente, levando em consideração o respeito à vida junto da dignidade da “pessoa humana”?

Luciana C.N.E. Mahuad – O médico é a primeira pessoa que se relaciona com o direito do paciente a uma morte digna, ainda que não haja regulação da matéria pelo Direito. Encontramos duas posições opostas a respeito da questão: a primeira delas no sentido de que se mantenham os cuidados médicos até o limite das possibilidades técnicas, sendo considerada a interrupção do tratamento, ainda que se pudesse presumir como tal a vontade do paciente, um homicídio a pedido, punível na forma da lei. A segunda, concordando com a interrupção da assistência médica, sob o fundamento de que não seria razoável supor que o paciente desejasse continuar a sofrer. Com as pessoas vivendo mais e ganhando maior acesso à assistência médica, a decisão sobre questões envolvendo a vida ou a morte de um doente deixou de ser de incumbência exclusiva dos médicos e passou também a pertencer ao próprio paciente e à sua família, assim como a toda a sociedade.

CNB/CF – Qual a importância do estudo para o entendimento dos conceitos de “morte digna” pelos profissionais do Direito que se relacionam com o assunto?

Luciana C.N.E. Mahuad – O estudo reuniu elementos para o debate em torno da matéria no âmbito jurídico, com sugestão para sua regulamentação por lei.

CNB/CF – Uma das novidades relacionadas ao Direito nos últimos anos são os chamados Testamentos Vitais, ou Diretivas Antecipadas de Vontade. Como este instrumento jurídico pode se relacionar com o conceito de morte digna em relação a pacientes incapazes de expressarem sua vontade?

Luciana C.N.E. Mahuad – Em nosso ordenamento, muitos são os fundamentos que justificam o reconhecimento da possibilidade de se exercerem as Diretivas Antecipadas de Vontade. O primeiro deles estaria na configuração atual de um direito à boa morte enquanto Direito da Personalidade, estruturado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada. Serviriam de apoio, ainda, os princípios constitucionais da liberdade de expressão de pensamento e da liberdade de crença e religião, bem como a tutela constitucional do direito à integridade física. A legislação civil, por sua vez, por apenas exigir, para a validade do negócio jurídico, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não defesa em lei, possibilitando a feitura de contratos atípicos, desde que observadas as normas gerais do ordenamento, e contemplando a ampla liberdade de estrutura, ao reconhecer que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, salvo quando a lei expressamente a exigir, também não apresentaria obstáculos maiores. O próprio contexto normativo no Brasil – que muito se assemelha ao de outros grupos sociais, mostrando até mesmo menos avanço do que o de outras sociedades, em que a matéria já está regulamentada por lei em sentido técnico – autoriza defender a possibilidade e a validade de negócio jurídico que assuma a forma e o conteúdo de Diretivas Antecipadas de Vontade.

CNB/CF – A obra aborda em diversos momentos a vida prolongada pela tecnologia. Como o livro analisa a sobrevida que os aparelhos atuais oferecem e o papel dos documentos que garantem as vontades previamente expressadas pelo paciente?

Luciana C.N.E. Mahuad – As diretivas se traduzem justamente como declaração antecipada de vontade para permitir ou proibir tratamento médico no momento em que esta vontade não puder ser mais expressada em virtude da incapacidade do declarante. São garantia de que a vontade do paciente seja observada quando ele não puder mais manifestá-la. Existem duas formas para o exercício das diretivas antecipadas de vontade.

De fato, podem ser executadas por meio de declaração escrita do próprio interessado. Nesta hipótese, são conhecidas como “testamento vital” ou “testamento biológico”, testamento em vida, testament de vie ou living will. Preferimos nomeá-las como diretivas antecipadas escritas, para evitar confusão com o instituto do testamento do Direito das Sucessões. Quando exercidas por meio da constituição de um procurador, também encontram diferentes denominações, como durable power of attorney for health care ou procuração para cuidados de saúde, sendo esta última, obviamente, a mais adequada para o nosso vernáculo.

CNB/CF – O primeiro semestre de 2021 registrou um recorde histórico de testamentos e de testamentos vitais realizados. Em sua análise, o que levou as pessoas a se preocuparem mais com a morte e o planejamento sucessório?

Luciana C.N.E. Mahuad – A maior proximidade da internação e da morte trazida pela pandemia da COVID-19. O mundo se viu obrigado a parar e a debater sobre assuntos que todos queríamos esquecer na correria da vida “normal” que levávamos antes! Como registrei no livro: “Em um mundo cada vez mais evoluído tecnologicamente e interconectado, o tempo e sua passagem não são mais elementos tão facilmente percebidos. A velocidade frenética dos fatos, a agitação do dia a dia, o considerável número de atividades e a grande gama de informações e descobertas disponíveis, porém, não nos tornam – ainda – imunes às doenças ou ao advento da morte. Reflexão sobre tais temas, portanto, é necessária, assim como coragem para regulamentação da matéria na medida do necessário, de forma que cada um de nós possa ter garantido o pleno desenvolvimento de nossa personalidade em todos os âmbitos de nossa existência”.

CNB/CF – Como os atos notariais de testamento e testamentos vitais podem auxiliar as pessoas que buscam se planejar para acontecimentos imprevisíveis e qual a importância destes institutos?

Luciana C.N.E. Mahuad – Os tabeliães podem auxiliar as pessoas interessadas em redigir tais documentos. Ao tempo do estudo, verifiquei que tabeliães já disponibilizavam, em seus sites, modelos para a escritura pública de diretivas antecipadas de vontade como no 26º Tabelionato de Notas de São Paulo (Nota 644 -https://www.26notas.com.br/blog/?p=6536, com acesso em 16 de março de 2016).

CNB/CF – De que forma o planejamento sucessório cria efeitos imediatos na vida de quem o faz?

Luciana C.N.E. Mahuad – O planejamento sucessório é instituto clássico do Direito de Família (testamento em sentido clássico). No livro, trabalhamos com o direito à morte digna e o seu exercício por meio de diretivas antecipadas de vontade (âmbito da Bioética).

CNB/CF – Com a chegada da pandemia os atos notariais migraram para o ambiente eletrônico e hoje, testamentos, testamentos vitais entre outros atos podem ser realizados de forma digital pela plataforma e-Notariado. Como avalia esta evolução e quais seus impactos na aferição de vontade das pessoas?

Luciana C.N.E. Mahuad – Sou uma entusiasta da tecnologia pela democratização de acesso que ela possibilita. Em outros termos, todas as ferramentas trazidas com a tecnologia são bem-vindas, mas há sempre que se garantir respeito às normas em vigor e à vontade dos interessados. Há meios para tanto. Basta coordenar o novo com os requisitos dos sistemas já estruturados em nosso país, como os Tabelionatos e o próprio Poder Judiciário.

CNB/CF – Ao longo dos anos, os Cartórios de Notas vêm contribuindo para o chamado movimento de desjudicialização, como nos serviços de inventários, divórcios, usucapião, entre outros. Como vê este movimento e a importância deste trabalho?

Luciana C.N.E. Mahuad – Com bons olhos. Todos nós, enquanto operadores do Direito, desejamos bem servir. Como dito acima, todos os avanços, inclusive tecnológicos, são muito bem-vindos para a prestação de serviços mais céleres e eficientes, uma vez resguardada a segurança jurídica necessária e cumpridos os requisitos legais.

CNB/CF – Como avalia a importância da atividade notarial para a segurança jurídica e prevenção de litígios na sociedade?

Luciana C.N.E. Mahuad – A importância é central. Bem assessorando as partes e garantindo a segurança necessária, os tabeliães auxiliam na prevenção de conflitos e na construção de uma sociedade mais harmônica!


Disponível em: https://www.notariado.org.br/o-mundo-se-viu-obrigado-a-debater-assuntos-que-todos-queriamos-esquecer/